‘Madame Bovary c’est moi’

«Emma julgara sentir amor; mas a felicidade que deveria resultar desse amor não aparecera, pelo que se devia ter enganado, pensava ela. Procurava agora saber o que se entendia, ao certo, nesta vida, pelas palavras felicidade, paixão e êxtase, que, nos livros, lhe haviam parecido tão belas. (…)

O encanto da novidade, pouco a pouco, caindo com a roupa que se despe, deixava a nu a eterna monotonia da paixão, que tem sempre as mesmas formas e a mesma linguagem. (…) A palavra humana é como um caldeirão rachado em que se batem melodias para fazer dançar os ursos, quando o que se pretendia era enternecer as estrelas. (…)

Mas essa felicidade, sem dúvida, era uma mentira inventada para causar o desespero de todo o desejo. (…) A palavra é um laminador que alonga sempre os sentimentos. (…) Não se deve mexer nos ídolos: o dourado fica-nos agarrado às mãos. (…) Donde provinha aquela deficiência da vida, aquela instantânea decomposição de todas as coisas a que se agarrasse? (…) Todo o notário encerra em si os destroços de um poeta.(…)

Existia apenas pelo pulsar das artérias, as quais lhe pareciam escapar-se como uma música ensurdecedora que enchesse os campos. O chão debaixo dos seus pés era mais movediço que uma onda, e os sulcos do terreno pareceram-lhe imensas vagas escuras que rebentavam. Tudo quanto tinha na cabeça de reminiscências, de ideias, se lhe escapava ao mesmo tempo, de uma vez, como as mil peças de um fogo-de-artifício».

– FLAUBERT, “Madame Bovary”, pp. 37, 177-8, 208, 218, 260-1, 267, 287). Claude Chabrol dirigiu a adaptação para o cinema (1991).

2 thoughts on “‘Madame Bovary c’est moi’

  1. Credo! Não digas isso nem a brincar! Com tanta mulher a habitar a literatura ocidental tinhas logo que ir escolher a mais tonta delas todas, que ainda por cima acho que bem pouco a ver contigo (talvez me engane, mas pelo menos é essa a ideia que tenho!)

  2. É isso mesmo: ton-ta. Talvez só a Lady Jane de D.H. Lawrence lhe dispute o galardão da tontice. Podem, aparentemente, ter pouco a ver comigo, mas, no íntimo, estão mais próximas do que seria de suspeitar.

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