A cegueira branca, descrita por Saramago em “Ensaio sobre a Cegueira”, não é uma ficção sobre um hipotético futuro, é o estado actual da humanidade.
Ontem, após um documentário sobre os estragos ambientais causados por leis humanas aplicadas em larga escala, em particular, os subsídios atribuídos a monoculturas para produção de bioenergia, questionei o suposto activista promotor do evento: se a nova lei da limpeza dos terrenos administrada em massa não produzia exactamente as mesmas consequências registadas no filme, tais como a desaparição da camada fértil à superfície do solo, a contracção da biodiversidade vegetal e animal, a retracção dos lençóis de água, etc.
Ele respondeu que, de facto, tinha conhecimento de casos em que jardins públicos foram completamente mutilados e de proprietários que levaram a lei demasiado à letra, dizimando espécies protegidas.
A seguir, perguntei qual era o organismo a que o cidadão poderia recorrer face a um executante de cortes abusivos. Então, ele recomendou a GNR como “aqueles que sabiam exactamente o que era para fazer”. Mas não foram dizimados jardins públicos pelas autarquias com a conivência da GNR?!…
Por essa e outras declarações, ficou claro que ele estava doutrinado pela educação, enquanto propaganda de Estado para formar cidadãos úteis e obedientes, e pelos media enquanto programação à distância.
Ficou claro que estava a falar com um ambientalista “de gabinete”. Esse é que é o principal problema dos discursos legisladores sobre o ambiente: provêm de emissores cuja experiência da Natureza é contemplativa, o mesmo é dizer, como o observador que vê do lado de fora e não como quem a vive. O seu conceito de “natural” é um relvado uniforme, ao lado de uma piscina com vista sobre as montanhas…
Má sorte nascer-se ser vivo nesta época de fascismo permanente, na qual as frases de certos fascistas arrependidos nos parecem tão prenunciadoras e reveladoras da nossa fragilidade (quem nos defende do Estado, quando as suas leis são aniquiladoras?):
«Agriculture is now a motorized food industry, the same thing in its essence as the production of corpses in the gas chambers and the extermination camps, the same thing as blockades and the reduction of countries to famine, the same thing as the manufacture of hydrogen bombs.» (Heidegger)
Não são as alterações climáticas, nem o “aquecimento global”, que trarão fins locais à humanidade, é algo mais quotidiano, que acontece e está a acontecer todos os dias e com cada vez mais frequência e velocidade: fome e sede. Os homens morrerão cada vez mais por não serem capazes de satisfazer as suas necessidades mais básicas, água e comida, numa ilha cujos recursos são limitados por certos ritmos da natureza, mas ainda mais limitados pela estúpida interferência humana.
Os preços de mercado dos alimentos e o valor das “commodities” nas Bolsas escalam a olhos vistos. Os especuladores esfregam as mãos. Especuladores ou espectadores vai dar no mesmo, pertencem ao mesmo espectro de cegueira branca: o perigo de uma mente derivada de mero voyeurismo (Gr. “spec”). Ah, o terrível culto da interioridade da burguesia cristã.
Os índios em fuga, os poucos que ainda resistem à tendência em transformá-los num núcleo museológico ou num guetto de alcóolicos e toxicodependentes, são os últimos filósofos naturais em existência, os únicos humanos que vivem directamente a Natureza, aqueles a quem é preciso escutar (não, não é o mito do bom selvagem, é uma pragmática real):
«Quando a última árvore for cortada, o último rio tiver secado e o último peixe for pescado, o homem branco descobrirá que o ouro não se come.» (Provérbio Lakota)
Eles sabem o que é o “homem branco”, o homem da cegueira branca, o mais selvagem entre os animais:
«Havia uma grande diferença na atitude tomada pelo índio e pelo caucasiano em relação à natureza, e essa diferença fazia de um conservacionista e do outro não-conservacionista da vida. O índio, tal como todas as outras criaturas que foram criadas e desenvolvidas, era sustentado pela mãe-terra comum. Ele era, portanto, parente de todos os seres vivos e dava a todas as criaturas direitos iguais a si próprio. Tudo o que era da Terra era amado e reverenciado. A filosofia do caucasiano era: “coisas da terra e Terra é para ser desdenhado e desprezado”. As florestas foram cortadas, o búfalo exterminado, o castor conduzido à extinção e as suas barragens maravilhosamente construídas dinamitadas, permitindo que as águas da inundação causassem mais estragos, e as próprias aves do ar se silenciaram. Grandes planícies de grama que adoçavam o ar foram reviradas; nascentes, ribeiros e lagos que viviam desde a minha infância secaram, e um povo inteiro foi molestado até à degradação e à morte. O homem branco passou a ser o símbolo da extinção de todas as coisas naturais neste continente.»
«Nós não pensamos as grandes planícies abertas, as curvas das belas colinas e os rios fluindo de modo sinuoso, como “selvagens”. Somente para o homem branco a natureza era uma “selva”, e só para ele era a terra “infestada” por animais “selvagens” e povos “selvagens”. Para nós, ela era mansa. A Terra era generosa e nós éramos cercados pelas bênçãos do Grande Mistério. Só quando o homem peludo do Este veio e amontoou injustiças sobre nós e as famílias que amávamos, é que ela se tornou “selvagem” para nós. Quando os próprios animais da floresta começaram a fugir à aproximação dele, então é que, para nós, o “Wild West” começou.» (Luther “Standing Bear”, 1928)
Há muito que esta terrível tendência deixou de ser um problema étnico localizado e específico dos índios americanos.
Os índios actuais, os índios isolados, somos nós.
Precisando sempre de novos inimigos, o homem branco deveio índio para si mesmo, e simultaneamente, lobo de si mesmo.
A sua estratégia mais global é a da auto-canibalização.