«… one has only learnt to get the better of words
For the thing one no longer has to say, or the way in which
One is no longer disposed to say it».
– T.S. Eliot, “Four Quartets”, ‘East Coker’, V.
Há pouco tempo, eu e um amigo procurávamos um nome para um projecto. Propusemos um ao outro algumas dezenas deles, sem alcançarmos comum acordo. O tempo passou, até que, certa manhã, acordei com um nome já caído em desuso, e que, conscientemente, já nem me lembrava que conhecia e o que significava. Eureka!, o meu amigo anuiu que era mesmo aquilo, não acreditando que um nome daqueles me pudesse ocorrer daquela forma. Como se recordasse algo que não sabia que já sabia, enterrado no fundo do inconsciente.
No entanto, acontece amiúde deitar-me com uma questão e acordar com a resposta, sem esforço consciente algum, após um sono sem sonhos. Talvez, por isso, os antigos atribuíssem ao travesseiro dotes de bom conselheiro (ando com uma tendência terrível para rimar).
Ontem, deitei-me com um certo manifesto filosófico a ecoar na cabeça: «Odeio, odeio a MEMÓRIA».
(Qual das memórias – “anamnésis”, “alétheia” e “Mnemosyne”? Todas?)
E acordei a «rememorar» um dos meus poemas favoritos de Camões que, desde pequena, sei de cor:
«Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
MEMÓRIA desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou».
O conceito que liga estes dois enunciados culturais é a Memória, sobre a qual pronunciam perspectivas opostas.
Deitei-me com a frase de um filósofo que repudia a teoria da reminiscência platónica e acordei com a obra de um poeta que cultivava o amor de características platónicas e petrarquianas, ou seja, aquele que suscita a elevação da alma através da reactivação da memória. Não é de desprezar que os versos sejam dedicados a uma tal Dinamene (quanto de dínamo há em Dinamene?).
Primeiro que tudo, relendo o poema, sinto a inversão das suas margens. Não faço mais a leitura de outrora: o céu e a terra trocaram de posições relativas, a vida, a visão, a ardência são novas para mim (nem sempre estive viva, estava morta, cega e apagada e não sabia…).
Mas qual foi o papel da memória nesse processo de composição da alma, da Dinamene/dínamo/’dynamis’ que há em nós? Neste ponto, tenho que dar a mão à palmatória à filosofia anti-reminiscência platónica: a memória não exerce papel nenhum, ou, então, a sua única utilidade será contradizer-se de tal forma que as suas múltiplas versões acabam sabotadas, neutralizadas, anuladas, auto-destruídas. A falácia de que a memória recupera alguma coisa… De certeza, que não a vida.
Platão é conhecido pelas suas ambiguidades, por ensinar o contrário do que faz (1), por fazer, ao fim e ao cabo, a sua própria crítica, por ser o primeiro a inverter o platonismo (2). É também o caso no que respeita à teoria da reminiscência (ou anamnese): se, por um lado, ele postula que as almas contemplaram no Além as Ideias, de que se esqueceram ao atravessar o rio Letes* (Esquecimento), e que devem reavivar ou reanimar neste mundo (teoria presente em vários momentos da sua obra como, por exemplo, o mito de Er n’ “A República”, a alegoria do Cocheiro e da Parelha de Cavalos Alados no “Fedro”, etc.), por outro lado, destitui os suportes mnemónicos deste mundo da eficácia necessária para despertar a memória (o mito de Toth no “Fedro”, as considerações da “Carta VII”, a demonstração com o escravo em “Ménon”, etc.). Uma mesma obra pode possuir dois mitos que se curto-circuitam mutuamente, como se passa no “Fedro”.
Platão, assumidamente discípulo de Sócrates, tal como este, provia a dialéctica de uma função desbastadora. Segundo a “Carta VII”, a finalidade da dialéctica, por meio do exame e da prova da discussão, não seria chegar a uma proposição verdadeira, mas antes colocar em fricção e desbaste mútuo todas as formas proposicionais, a fim de produzir a “faísca” que exprimiria o conhecimento verdadeiro: «After much effort, as names, definitions, sights, and other data of sense, are brought into contact and friction one with another, in the course of scrutiny and kindly testing by men who proceed by question and answer without ill will, with a sudden flash there shines forth understanding about every problem, and an intelligence whose efforts reach the furthest limits of human powers».
E quem é afinal o Cocheiro dos dois cavalos alados senão Zeus-Thor, o deus do trovão/relâmpago (som/faísca)?
A metafísica em Platão está ligada a esse repúdio da representação linguística ou da memória enquanto registo histórico, como assinala novamente a Carta VII: «Posso dizer o seguinte sobre todos aqueles que escreveram ou que escreverão: todos os que afirmam saber as coisas sobre as quais medito, seja por tê-las ouvido de mim, seja por tê-las ouvido de outros, seja por tê-las descoberto sozinhos, não é possível, segundo meu parecer, que tenham entendido algo desse objeto. Sobre essas coisas não existem um texto escrito meu nem existirá jamais (oǔxouv έμόv γε πεрì αủтẅv εoтιv σúγγрαμμα oủбέ μήποтε γένηтαι). De nenhuma maneira o conhecimento dessas coisas é comunicável como o dos outros conhecimentos, mas, depois de muitas discussões sobre elas e depois de testadas por uma comunidade de vida, subitamente, como luz que se acende de uma faísca, ele nasce na alma e alimenta-se de si mesmo [outra tradução da passagem acima referida]. (…) Não creio que um tratado escrito e uma comunicação sobre esses temas seja um benefício para os homens, a não ser para aqueles poucos capazes de encontrar a verdade sozinhos, com poucas indicações que lhes forem dadas, enquanto os outros se encheriam, alguns de um desprezo injusto e inconveniente, outros, ao contrário, de uma presunção soberba e vazia, convencidos de ter aprendido coisas magníficas. (…) Portanto todo homem sério evita escrever coisas sérias para não abandoná-las à aversão e à incapacidade de compreensão dos homens. Em suma, de tudo isto deve-se concluir que, ao vermos obras escritas de alguém, seja leis de legisladores ou escritos de outro tipo, as coisas escritas não eram para tal autor as mais sérias (οποuбαιóтαтα), sendo ele sério, pois essas estarão depositadas na parte mais bela dele; ao contrário, se consigna por escrito aqueles pensamentos que são para ele verdadeiramente os mais sérios, “então certamente” não os deuses, mas os mortais “fizeram-no perder o juízo”» (341 c-e, 344 c-d).
Neste sentido, Platão afirma o carácter grego em relação com a criança que nada guarda ainda na memória: «Sólon, Sólon, vós, os gregos, sois sempre crianças! Um grego não fica velho» (“Timeu”, 22b4-5); «… como se fôsseis criancinhas, recomeçais outra vez do ponto de partida, sem que ninguém saiba o que se passou [nos tempos passados], tanto aqui como entre vós mesmos» (“Timeu”, 23b1-6).
No “Fedro”, o mito de Toth (transcrito abaixo), vem esclarecer a aparente antinomia entre uma memória que não é inata, porque as Almas foram mergulhadas no Esquecimento e encarnam como crianças, mas que também não é adquirida, pois nenhum registo a poderá reavivar.
Nessa obra, Platão molda um enquadramento conceptual com base em dois termos opostos, a «memória» e a «rememoração», e apresenta-o na fala do rei ao sábio Toth: «Tu, neste momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer! Ela tornará os homens mais esquecidos pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais, e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não inventaste um remédio para a memória, mas sim para a rememoração. Quanto à transmissão do ensino, transmites aos teus alunos uma aparência de sabedoria [sophías … dóxan] e não a sabedoria verdadeira [alétheian], pois passarão a receber uma grande soma de informações [polygnómones], sem a respectiva educação! Hão-de parecer homens de saber, embora não passem de ignorantes em muitas matérias, e no convívio insuportáveis, por conseqüência, tornar-se-ão sábios imaginários [doxósophoi], em vez de sábios verdadeiros!».
Em “Ménon”, reitera-se a mesma ideia: «o buscar e o aprender, em sua totalidade, são rememoração [anamnésis]» (81d4-5).
Platão usa para designar a sabedoria ou o conhecimento verdadeiro o termo grego “alétheia” que é antinómico de “lethe”, estar em esquecimento ou oculto. Literalmente, “a-létheia” é não-esquecimento, descobrimento, epifania (leitura já feita por Heidegger). Descobrir Heráclito: “A natureza ama esconder-se”.
No “Crátilo”, Platão decompõe “alétheia” em “ale” (corrida) e “theia” (divina). O não-esquecimento é concebido como uma corrida, a que se atribui cariz divino para a distinguir das corridas ordinárias dos atletas gregos. É esta a noção, ou, melhor dito, a moção da Verdade que descobre Ser (“alétheia ton onton”, a verdade das coisas que são).
Platão usa diferentes termos para o que é traduzido (e traído) uniformemmente como memória: “anamnésis”, “alétheia” e “Mnemosyne”. Os jogos de Platão entre estes três níveis distintos perdem-se com a tradução daqueles por uma mesma palavra.
A “anamnésis” ou reminiscência constitui o esforço pelo qual a alma desoculta a verdade esquecida, a qual é a “alétheia”. No “Fedro” (tal como em Camões), é o delírio amoroso suscitado pela beleza do objecto amado que faz encetar o esforço de reminiscência para saber/saborear a corrida divina (“alétheia”) até ao Belo em si.
Porém, a “anamnésis” é oposta à “alétheia” no mito de Toth acima referido. O rei afirma que a escrita é “pharmakon” (fármaco ou droga, com o duplo sentido de medicamento e veneno) para a anamnese, mas não para a “alétheia”. Através deste mito, Platão torna a destituir de valor quaisquer suportes de apoio à memória. No seu entender, as obras e produtos materiais do labor humano não promovem (pró-movem) a verdadeira memória, a “alétheia”, entendida como moção, movimento, corrida, velocidade.
Quanto a Mnemosyne,
Mnemosyne’s name derives from Mene, Moon, and mosune, ‘wooden house’ or ‘tower’, so literally means ‘the House of the Moon.’ As Plato somewhat disparagingly said, the Moon can teach even the very slowest creature to count, and gain ‘a general insight into the relations of number with number,’ watching the waxing and waning, and counting from Moon to Moon, giving us past, present and a predictable future (Epinomis, 978b-979a). And practically all the words in Greek concerned with measurement and mind, menstruation, wisdom and mania, have the Moon root of Me, Men or Ma in them from the Sanskrit. (Mene, Moon; Mneme, remembrance; mnesthenai, remember, anamnesis, recollection; metis, wisdom, mania, mania, amnesis, forgetfulness, etc). In the Aitareya Upanishad, for instance, when the heavenly bodies are asked to find an abode within the human being, we are told that ‘the Sun became sight and entered the eyes, and the Moon became mind and entered the heart.’ (Cashford, The Moon: Myth and Image, ch. 5).
ela é a deusa que, unindo-se a Zeus, gerou as nove Musas que presidem à inspiração de adivinhos e poetas e levam à recordação dos feitos dos heróis. Tal como Lethes, ela é representada por uma fonte de água de que a alma bebe. Quando chega a morte, Mnemosyne une-se a Lethes. As duas fontes – a do Esquecimento e a da Memória – unem-se. Morte híbrida de esquecimento e de memória, mistura indiferenciada de duas águas, as duas águas que a génese (ou o Génesis) separou.
«Thou shalt find on the left of the House of Hades a Well-spring [Lethes],
And by the side thereof standing a white cypress.
To this Well-spring approach not near.
But thou shalt find another by the Lake of Mnemosyne,
Cold Water flowing forth, and there are guardians before it.
Say: “I am a child of Earth and of Starry Heaven;
But my race is of Heaven (alone). This ye know yourselves.
And lo, I am parched with thirst and I perish. Give me quickly
The cold water flowing forth from the Lake of Mnemosyne.”
And of themselves they will give thee to drink from the holy Well-spring.
And thereafter among the other Heroes thou shalt have lordship.» – The Petelia Tablet (of very thin gold, worn as amulet round the neck of the deceased, found in South Italy).
Também um hino órfico homenageia a deusa da memória:
«Mnemosyne I call, the Queen, consort of Zeus, Mother of the sacred, holy and sweet-voiced Muses. Ever alien to her is evil oblivion that harms the mind, she holds all things together in the same dwelling place, in the mind and soul of mortals, she strengthens the powerful ability of humans to think.
Most sweet, vigilant, she reminds us of all the thoughts that each one of us is for ever storing in our hearts, overlooking nothing, rousing everyone to consciousness. But, blessed goddess, awaken for the initiates the memory of the sacred rite, and ward off forgetfulness from them».
Em que é que Mnemosyne se distingue de “alétheia”? A segunda parece ser apenas a corrida sempre em curso, movida pelo desejo de encontrar a primeira, a fonte/deusa.
No “Crátilo”, a palavra Eros é feita derivar de “esros”, “esrein”, influir, influência, influxo. Eros é algo que escorre a partir de dentro. Platão estabelece ainda relações com “heros”, herói, e afirma que os heróis são uma geração de semideuses nascidos do amor, eloquentes indagadores (ou dialécticos), hábeis em questionar (“erotân”). é constante, ao longo do “Fedro”, esse jogo de formas homófonas que renova a etimologia: entre “érota” (relativo ao amor) e “érota” (o imperativo de perguntar: Pergunta!). O amor que gera o herói compõe-se com o desejo de indagar. Amor curioso: quando já não queremos saber, deixámos de amar.
A palavra que Platão usa para “indagar” não é a mesma da seguinte expressão de Heráclito: «É necessário que os homens filósofos sejam bons indagadores [“historas”] de muitas coisas». Para Platão, a questão do herói é questão de desejo e não de história. É um influxo, uma seta lançada por Eros, e não uma pergunta hermenêutica sobre proposições do passado.
A tríade platónica desejo-questão-herói reúne-se no fluxo de homofonias que envolvem “Eros”.
‘‘At once that man forgets his heavy heart,
And has no memory of any grief,
So quick the Muses’ gift diverts his mind.’ (Hesiod, Theogony, 105-8)
Contudo, Platão ao registar as suas teorias sobre a memória, preserva o que rejeitava na “Carta VII”: «se consigna por escrito aqueles pensamentos que são para ele verdadeiramente os mais sérios, “então certamente” não os deuses, mas os mortais “fizeram-no perder o juízo”».
E foi aí que Platão, segundo o próprio, “perdeu o juízo”.
(1) «Mas o Uno não precederá todo o conceito? Aí é que Platão ensina o contrário do que faz: cria conceitos, mas tem necessidade de os pôr como representando o incriado que os precede» (Deleuze, “O Que é a Filosofia?”, p. 32).
(2) «Não era preciso que Platão tivesse sido o primeiro a inverter o platonismo, que ao menos tivesse sido o primeiro a mostrar a direcção de uma tal inversão? Recorde-se o grandioso final do Sofista: a diferença é deslocada, a divisão volta-se contra si mesma, funciona ao revés e, à força de aprofundar o simulacro (o sonho, a sombra, o reflexo, a pintura), demonstra a impossibilidade de o distinguir do original ou do modelo. O Estrangeiro dá uma definição do sofista que não pode mais distinguir-se do próprio Sócrates: o imitador irónico» (Deleuze, “Diferença e Repetição”, p. 138).
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Platão, “Fedro ou da Beleza”:
«Sócrates – Conheço uma lenda que nos foi transmitida pela tradição antiga. Se é verdadeira ou falsa, não sei, mas, se por nós mesmos pudéssemos descobrir a verdade, importar-nos-íamos com o que os homens dizem?
Fedro – Que pergunta! Vamos, conta-me essa história que dizes ter ouvido!
Sócrates – Pois bem: ouvi uma vez contar que, na região de Náucratis, no Egito, houve um velho deus deste país, deus a quem é consagrada a ave que chamam íbis, e a quem chamavam Thoth. Dizem que foi ele quem inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, bem como o jogo das damas e dos dados, e, finalmente, fica sabendo, os caracteres gráficos (escrita). Nesse tempo, todo o Egito era governado por Tamuz, que residia no sul do país, numa grande cidade que os gregos designam por Tebas do Egito, onde aquele deus era conhecido pelo nome de Ámon. Thoth encontrou-se com o monarca, a quem mostrou as suas artes, dizendo que era necessário dá-las a conhecer a todos os egípcios. Mas o monarca quis saber a utilidade de cada uma das artes e, enquanto o inventor as explicava, o monarca elogiava ou censurava, consoante as artes lhe pareciam boas ou más.
Foram muitas, diz a lenda, as considerações que sobre cada arte Tamuz fez a Thoth, quer condenando, quer elogiando, e seria prolixo enumerar todas aquelas considerações. Mas, quando chegou a vez da invenção da escrita, exclamou Thoth: “Eis, oh Rei, uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os ajudará a fortalecer a memória, pois com a escrita descobri o remédio para a memória”.
“Oh, Thoth, mestre incomparável, uma coisa é inventar uma arte, outra julgar os benefícios ou prejuízos que dela advirão para os outros! Tu, neste momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer!
Ela tornará os homens mais esquecidos pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais, e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não inventaste um remédio para a memória, mas sim para a rememoração.
Quanto à transmissão do ensino, transmites aos teus alunos uma aparência de sabedoria [sophías … dóxan] e não a sabedoria verdadeira [alétheian], pois passarão a receber uma grande soma de informações [polygnómones], sem a respectiva educação! Hão-de parecer homens de saber, embora não passem de ignorantes em muitas matérias, e no convívio insuportáveis, por conseqüência, tornar-se-ão sábios imaginários [doxósophoi], em vez de sábios verdadeiros!”
Fedro – Com que facilidade inventas, caro Sócrates, histórias egípcias e de outras terras quando isso te convém!
Sócrates – Dizem, caro amigo, que os primeiros oráculos no templo de Zeus, em Donona, foram feitos por um carvalho! É evidente que os homens daquele tempo não eram tão sábios como os da nossa geração e, como eram ingênuos, o que um carvalho ou um rochedo dissessem tornava-se muito importante, conquanto lhes parecesse verídico! Mas para ti talvez interesse saber quem disse determinada coisa e de que terra é natural, pois não te basta verificar se essa coisa é verdadeira ou falsa!
Fedro – Tens razão para me castigares com essas palmatoadas mas, no que respeita à escrita, parece-me que o tebano tinha razão.
Sócrates – De onde se conclui o seguinte: se alguém expõe as suas regras de arte por escrito e um outro vem depois, que aceita esse testemunho escrito como sendo a expressão sólida de uma doutrina valiosa, esse alguém seria tolo, não entendendo o aviso de Ámon, e atribuiria maior valor às teorias escritas do que a um simples tópico para rememoração do assunto tratado no escrito, não é assim?
Fedro – Perfeitamente!
Sócrates – O maior inconveniente da escrita parece-se, caro Fedro, se bem julgo, com a pintura. As figuras pintadas têm atitudes de seres vivos mas, se alguém as interrrogar, manter-se-ão silenciosas, o mesmo acontecendo com os discursos: falam das coisas como se estas estivessem vivas, mas, se alguém os interroga, no intuito de obter um esclarecimento, limitam-se a repetir sempre a mesma coisa. Mais: uma vez escrito, um discurso chega a toda a parte, tanto aos que o entendem como aos que não podem compreendê-lo e, assim, nunca se chega a saber a quem serve e a quem não serve. Quando é menoscabado, ou justamente censurado, tem sempre necessidade da ajuda do seu autor, pois não é capaz de se defender nem de se proteger a si mesmo.
Fedro – Continuas a exprimir-te com toda a justeza!
Sócrates – Deveremos agora examinar uma outra espécie de discursos, irmã legítima da precedente, como nasce e em que é superior à outra espécie.
Fedro – A que espécie de discursos aludes e como surge?
Sócrates – Refiro-me ao discurso conscienciosamente escrito, com a sabedoria da alma, ao discurso capaz de se defender a si mesmo, e que sabe quando convém ficar calado e quando convém intervir.
Fedro – Por acaso estás a referir-te ao discurso vivo e animado do sábio, do qual todo o discurso poderia ser tomado com um simples simulacro?
Sócrates – Exatamente a esse! Diz-me então: um agricultor inteligente possui sementes às quais dá grande valor e de que pretende obter os frutos. Achas que esse agricultor pensaria em semear essas sementes durante o verão, nos jardins de Adônis [NT: Forma grega da palavra semítica “Adon”, o Senhor], e que esperaria vê-las desenvolvidas, tornadas plantas, no prazo de oito dias? Seria possível que assim acontecesse, mas a simples título de culto religioso, na altura das festas em honra de Adônis. Mas, quanto às sementes a que deseje dar um fim útil, semeá-las-á em terreno apropriado, utilizando a técnica da agricultura, e sentir-se-á muito feliz se, ao oitavo mês, colher todas as que semeara!
Fedro – É evidente, Sócrates, que esse homem faria ambas as coisas, uma com intenção séria, outra com intenção diversa!
Sócrates – Mas podemos nós dizer que o homem conhecedor do justo, do belo e do bom, dará às suas próprias sementes um uso menos avisado do que o agricultor?
Fedro – Por nada deste mundo!
Sócrates – Pois bem, é evidente que, quem conheça o justo, o bom e o belo não irá escrever tais coisas na água, nem usará um caniço para semear os seus discursos, os quais, além de impotentes para se defenderem por si mesmos, não servem para ensinar corretamente a verdade.
Fedro – Pelo menos não seria provável que o fizessem:
Sócrates – É evidente que não! Não deixará, naturalmente, de semear nos jardins literários, mas apenas por passatempo. Ao escrever, apenas procurará acumular para si mesmo um tesouro de rememoração para a velhice, pois os velhos esquecem tudo. Tirará também grande prazer em escrever para os que seguem no seu caminho e muito se alegrará vendo crescer essas tenras plantas. Enquanto uns se divertirão em banquetes e outros festins semelhantes, o homem de quem falo divertir-se-á com as coisas que referi.
Fedro – Que magnífico divertimento, Sócrates, quando comparado com essoutro gênero de divertimentos de que falaste! Que bela atividade a de um homem que se compraz escrevendo discursos sobre a Justiça e sobre outras virtudes!
Sócrates – Assim é, meu caro Fedro! Todavia, acho muito mais bela a discussão destas coisas quando se semeiam palavras de acordo com a arte dialética, uma vez encontrada uma alma digna para receber as sementes! Quando se plantam discursos que se tornam auto-suficientes e que, em vez de se tornarem estéreis, produzem sementes e fecundam outras almas, perpetuando-se e dando ao que os possui o mais alto grau de felicidade que um homem pode atingir!
Fedro – Isso que agora disseste é ainda mais belo!
Sócrates – Já que chegamos e um acordo, caro Fedro, podemos decidir agora sobre outro assunto? (…)».